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Em meio ao debate acalorado sobre relações raciais, recomendo e reflito sobre dois textos espetaculares: Alisando nosso cabelo, da Bell Hooks (em inglês, aqui ou na tradução do Crioula que está perfeita), e sobre a série estadunidense que está dando o que falar: How to get away with murder, estrelada pela Viola Davis.
O episódio 13 – Mama’s here now ou Mamãe está aqui agora – é uma pancada! Nele finalmente vemos a
fragilidade da aguerrida professora e advogada Annalise Keating (Viola Davis),
a interação conflituosa de gerações, questões sobre o estupro de mulheres,
nesse caso especificamente negras, feridas ainda não cicatrizadas entre mãe e
filha, a polêmica sobre receber um nome e se autonomear, o problema de a
população afrodescendente viver com doações/sobras alheias. Todos os temas
interseccionados sem linearidade, tal qual trabalho nas questões de gênero e
raça. A coisa toda acontece simultaneamente e uma temática influencia a outra
para que o caso seja único entre Annalise e sua mãe Ophelia (Cicely Tyson).
Realmente me senti
representada, não porque eu tenha uma relação conflituosa com minha mãe ou
porque tenha passado pelos mesmos problemas das personagens, mas, porque, além
da raça e do gênero, vi um mix de temas importantes sendo evidenciados: mães
superprotetoras que parecem não proteger suas filhas; a firmeza de Ophelia nos
cuidados da filha para que não desanimasse diante de um momento depressivo (a
morte do marido); defeitos e qualidades de mulheres negras expostos ali, de
maneira complexa; o fim de personagens mulheres negras circunscritos a alegorias,
exclusivamente; o retrato de mulheres negras como seres humanos em estas contradições
e acertos.
Na infância, Annalise
foi estuprada pelo tio e sempre achou que sua mãe, além de saber de tudo,
preferiu ignorar o acontecido, motivo pelo qual carregava consigo extrema mágoa
da mãe. Por sua vez, Ophelia acreditava que a filha poderia ser a assassina do próprio
marido.
E o que essa história
toda tem a ver com o texto de bell hooks? Então pessoas, esse nó principal, e
outros menores, se desfazem em uma cena sobre ancestralidade. A fim de
descobrir a versão de sua filha sobre o assassinato do marido, Ophelia chama
Annalise para: PENTEAR-LHE OS CABELOS! É isso mesmo minha gente, algo tão
simples, mas que eu mulher negra que já fui criança, e tantas outras mulheres
negras espalhadas por essa diáspora (como a própria bell hooks e talvez você
leitora) sabemos que é um dos maiores atos de afeto entre mãe e filha negras.
Bell hooks diz que neste cuidado “tínhamos um mundo no qual as imagens
construídas como barreiras entre a nossa identidade e o mundo eram abandonadas
momentaneamente, antes de serem reestabelecidas. Vivíamos um instante de
criatividade, de mudança”.
O ato de pentear os
cabelos exige todo um ritual e Ophelia, pobre e idosa, mostra parte deste rito quando
faz a imponente profissional Annalise, que ali na intimidade é apenas mais uma
filha, respeitar toda a sua história como mãe e mulher negra e sentar-se no
chão para ser penteada. É também nesse momento de intimidade e carinho que essas
mulheres compartilham as verdades mais escondidas de suas trajetórias. Ophelia
fala que homens sempre pegam o que querem das mulheres e diz que viu o dia em
que o tio de Annalise saiu do quarto da garota durante a madrugada, soube o que
ele tinha feito com ela e que pouco tempo depois, tirou as crianças de casa e
com um simples fósforo e o álcool da garrafa de bebida do tio, se livrou do
homem que estuprara sua filha. Menciona, igualmente, o preço que pagou pelo ato,
pois perdeu o único lugar que tinha para abrigar sua família e viveu durante
muito tempo de doações da igreja, coisa que “Anna Mae” sempre detestou. Após
essa declaração a personagem forte de Cicely Tyson, diz que às vezes as pessoas
só fazem o que têm que fazer e termina dizendo que não julgará a filha, caso
ela tenha matado Sam.
O cuidado da produção
com esse momento tão caro às mulheres negras faz com que uma cena extremamente
densa se torne algo de uma beleza singular. Nenhuma descrição que eu fizesse
faria jus ao que se passa na tela, e o modo como a cena me tocou provavelmente
será diferente do como tocará outras mulheres, o que atribuo às experiências
que cada uma de nós viveu.
O processo de tornar-se
mulher negra sobre o qual bell hooks discorre em seu texto, inevitavelmente se
faz presente na cena; a intimidade e o afeto entre mulheres negras mostra uma
prática ancestral, que resiste: resiste aos séculos, resiste ao racismo, ao
capitalismo e suas práticas de embranquecimento das mulheres negras, e me
parece resistir porque representa a práxis
máxima do afeto entre duas mulheres negras.
Em tempos, de uma
internet quase sem tolerância, nos quais xingar/falar mal de mulheres negras
pelas características de seus cabelos é algo comum e naturalizado, faz-se
necessário lembrar que tal atitude não ofende apenas a mulher e a sua
autoestima - não é tão simples de ignorar porque não diz respeito apenas ao
sujeito que nós somos; o que dói em muitas de nós é a ofensa a toda uma
tradição e às memórias afetivas positivas que temos de nossas mães, nossas, avós,
tias, primas, bisas, irmãs e até mesmo amigas. Ofender nossos cabelos ofende a
uma história compartilhada somente entre mulheres negras, mas independente de
tudo isso, e talvez até contrariando um pouco o desenvolvimento da argumentação
de bell hooks (que escreveu seu texto em 1989), esses momentos de doação, de amor,
de companheirismo, de criatividade e de intimidade resistem quase que silenciosamente.
Eles não se renderam e nem se rendem ao mercado; e, acredito, não se rendem
porque manter nossas tradições nos pequenos atos diários significa mostrar para
as mulheres que amamos o quanto somos poderosas juntas.
Esse pequeno ato de
resistência cotidiana entre mulheres negras vale muito mais do que enormes
textos sobre sororidade, porque ele diz, para nós mesmas, que não estamos sós
nesse mundo cheio de racismo, de machismo e de violência.
A autora deste texto é Adélia Mathias. Jovem mulher negra formada em Letras, doutoranda em Literatura na Universidade de Brasília e uma militante feminista e anti-racista que coloca paixão e emoção no que faz e no que escreve.
Que sensível!
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