sábado, 13 de fevereiro de 2016

Nossos cabelos, nossa ancestralidade e nossa resistência cotidiana

Imagem de https://ofpagesandstages.wordpress.com/

Em meio ao debate acalorado sobre relações raciais, recomendo e reflito sobre dois textos espetaculares:  Alisando nosso cabelo, da Bell Hooks (em inglês, aqui ou na tradução do Crioula que está perfeita), e sobre a série estadunidense que está dando o que falar: How to get away with murder, estrelada pela Viola Davis.

O episódio 13 – Mama’s here now ou Mamãe está aqui agora – é uma pancada! Nele finalmente vemos a fragilidade da aguerrida professora e advogada Annalise Keating (Viola Davis), a interação conflituosa de gerações, questões sobre o estupro de mulheres, nesse caso especificamente negras, feridas ainda não cicatrizadas entre mãe e filha, a polêmica sobre receber um nome e se autonomear, o problema de a população afrodescendente viver com doações/sobras alheias. Todos os temas interseccionados sem linearidade, tal qual trabalho nas questões de gênero e raça. A coisa toda acontece simultaneamente e uma temática influencia a outra para que o caso seja único entre Annalise e sua mãe Ophelia (Cicely Tyson).

Realmente me senti representada, não porque eu tenha uma relação conflituosa com minha mãe ou porque tenha passado pelos mesmos problemas das personagens, mas, porque, além da raça e do gênero, vi um mix de temas importantes sendo evidenciados: mães superprotetoras que parecem não proteger suas filhas; a firmeza de Ophelia nos cuidados da filha para que não desanimasse diante de um momento depressivo (a morte do marido); defeitos e qualidades de mulheres negras expostos ali, de maneira complexa; o fim de personagens mulheres negras circunscritos a alegorias, exclusivamente; o retrato de mulheres negras como seres humanos em estas contradições e acertos.

Na infância, Annalise foi estuprada pelo tio e sempre achou que sua mãe, além de saber de tudo, preferiu ignorar o acontecido, motivo pelo qual carregava consigo extrema mágoa da mãe. Por sua vez, Ophelia acreditava que a filha poderia ser a assassina do próprio marido.

E o que essa história toda tem a ver com o texto de bell hooks? Então pessoas, esse nó principal, e outros menores, se desfazem em uma cena sobre ancestralidade. A fim de descobrir a versão de sua filha sobre o assassinato do marido, Ophelia chama Annalise para: PENTEAR-LHE OS CABELOS! É isso mesmo minha gente, algo tão simples, mas que eu mulher negra que já fui criança, e tantas outras mulheres negras espalhadas por essa diáspora (como a própria bell hooks e talvez você leitora) sabemos que é um dos maiores atos de afeto entre mãe e filha negras. Bell hooks diz que neste cuidado “tínhamos um mundo no qual as imagens construídas como barreiras entre a nossa identidade e o mundo eram abandonadas momentaneamente, antes de serem reestabelecidas. Vivíamos um instante de criatividade, de mudança”.

O ato de pentear os cabelos exige todo um ritual e Ophelia, pobre e idosa, mostra parte deste rito quando faz a imponente profissional Annalise, que ali na intimidade é apenas mais uma filha, respeitar toda a sua história como mãe e mulher negra e sentar-se no chão para ser penteada. É também nesse momento de intimidade e carinho que essas mulheres compartilham as verdades mais escondidas de suas trajetórias. Ophelia fala que homens sempre pegam o que querem das mulheres e diz que viu o dia em que o tio de Annalise saiu do quarto da garota durante a madrugada, soube o que ele tinha feito com ela e que pouco tempo depois, tirou as crianças de casa e com um simples fósforo e o álcool da garrafa de bebida do tio, se livrou do homem que estuprara sua filha. Menciona, igualmente, o preço que pagou pelo ato, pois perdeu o único lugar que tinha para abrigar sua família e viveu durante muito tempo de doações da igreja, coisa que “Anna Mae” sempre detestou. Após essa declaração a personagem forte de Cicely Tyson, diz que às vezes as pessoas só fazem o que têm que fazer e termina dizendo que não julgará a filha, caso ela tenha matado Sam.

O cuidado da produção com esse momento tão caro às mulheres negras faz com que uma cena extremamente densa se torne algo de uma beleza singular. Nenhuma descrição que eu fizesse faria jus ao que se passa na tela, e o modo como a cena me tocou provavelmente será diferente do como tocará outras mulheres, o que atribuo às experiências que cada uma de nós viveu.

O processo de tornar-se mulher negra sobre o qual bell hooks discorre em seu texto, inevitavelmente se faz presente na cena; a intimidade e o afeto entre mulheres negras mostra uma prática ancestral, que resiste: resiste aos séculos, resiste ao racismo, ao capitalismo e suas práticas de embranquecimento das mulheres negras, e me parece resistir porque representa a práxis máxima do afeto entre duas mulheres negras.

Em tempos, de uma internet quase sem tolerância, nos quais xingar/falar mal de mulheres negras pelas características de seus cabelos é algo comum e naturalizado, faz-se necessário lembrar que tal atitude não ofende apenas a mulher e a sua autoestima - não é tão simples de ignorar porque não diz respeito apenas ao sujeito que nós somos; o que dói em muitas de nós é a ofensa a toda uma tradição e às memórias afetivas positivas que temos de nossas mães, nossas, avós, tias, primas, bisas, irmãs e até mesmo amigas. Ofender nossos cabelos ofende a uma história compartilhada somente entre mulheres negras, mas independente de tudo isso, e talvez até contrariando um pouco o desenvolvimento da argumentação de bell hooks (que escreveu seu texto em 1989), esses momentos de doação, de amor, de companheirismo, de criatividade e de intimidade resistem quase que silenciosamente. Eles não se renderam e nem se rendem ao mercado; e, acredito, não se rendem porque manter nossas tradições nos pequenos atos diários significa mostrar para as mulheres que amamos o quanto somos poderosas juntas.


Esse pequeno ato de resistência cotidiana entre mulheres negras vale muito mais do que enormes textos sobre sororidade, porque ele diz, para nós mesmas, que não estamos sós nesse mundo cheio de racismo, de machismo e de violência.





A autora deste texto é Adélia Mathias. Jovem mulher negra formada em Letras, doutoranda em Literatura na Universidade de Brasília e uma militante feminista e anti-racista que coloca paixão e emoção no que faz e no que escreve. 

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