quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

Irene Preta

Babá com o menino Eugen Keller 


Minha babá era um avião de mulher, uma mulata mineira chamada Irene que causava furor onde quer que passasse. Eu ia para a escola ouvindo os homens uivando, ganindo, gemendo, nas obras, nas ruas, enquanto ela seguia orgulhosa. Sempre associei esse fenômeno à magia da Irene. O assédio não a diminuía, pelo contrário, era um poder admirável que ela possuía e que nunca cheguei a experimentar. 
(Fernanda Torres - 2016)



Irene no Céu

Irene preta 

Irene boa 
Irene sempre de bom humor. 
Imagino Irene entrando no céu: 
- Licença, meu branco! 
E São Pedro bonachão: 
- Entra, Irene. 
Você não precisa pedir licença.
(Manuel Bandeira - 1936)

A leitura do texto de Fernanda Torres em uma coluna do Jornal a Folha de SãoPaulo me fez lembrar uma poesia de Manuel Bandeira, Irene no Céu. A minha lembrança se deve ao fato da atriz ter escrito um texto em que fala de algumas experiências vivenciadas por ela e emite juízo de valor sobre fatos do cotidiano feminino – tudo, como diria o editor alemão que não aceitou publicar o livro por ela escrito, a partir de uma perspectiva machista. Fernanda Torres neste texto apresenta-se machista, racista e preconceituosa com as classes sociais mais baixas. Ela fala de sua experiência de mulher branca e emite juízo sobre diversas situações vivenciadas pelas mulheres sem atribuir nomes ou citar casos, a exceção da história de Irene e de uma morena que ela conheceu.

O trecho em que a atriz fala de Irene diz que a mulher sentia-se orgulhosa de ouvir “os homens uivando, ganindo, gemendo, nas obras, nas ruas” quando ela passava. A descrição que temos de Irene é de uma mulher negra, muito bonita e orgulhosa, mas que Fernanda não consegue assim definir, de forma que usa a palavra mulata[1]. A definição de Irene como mulata já marca o racismo. O machismo vem em seguida quando ela assume que a mulher era assediada, mas isso não a diminuía, pelo contrário, revelava um poder que ela tinha. Fernanda não consegue entender que nesta época, provavelmente há uns 40 anos atrás, o espaço de fala e a cultura das mulheres eram completamente diferentes dos dias atuais. Tempos atrás, as mulheres nem percebiam que estavam sendo agredidas quando vivenciavam estas situações, que as incomodavam, mas que para melhor sair delas, o certo era ignorar ou fingir que gostavam. Irene parece que ignorava, pois seguia orgulhosa o seu caminho.

A outra mulher que Fernanda cita em seu texto é uma morena, cuja casa só tinha “lugar para um homem, e esse homem era ela”. Temos a descrição de um sujeito feminino, provavelmente negro, que não aceitou as imposições de um sujeito masculino e que pela cultura machista de nossa sociedade atribuiu isso ao fato de também ser homem. A visão de Fernanda Torres é tão bitolada, tão machista e tão arcaica que ela não consegue interpretar que esta mulher estava sendo feminista e buscando a sua liberdade de forma destemida, sem saber as palavras que deveria usar. Contudo, o preconceito da colunista é tão grande que ela não consegue ver além do sexo (gênero ela não entenderia), esquecendo que este sujeito tem uma história e uma cultura.

Fernanda Torres é a mulher branca que sempre teve uma preta para cuidar dela, de sua casa e de suas obrigações (dentre elas os seus filhos). É a mulher que sofreu poucos abusos na vida, pois a sua condição social a blindou de muita coisa. É a mulher que acredita que a falta de estrutura familiar atinge somente os pobres, conforme se lê no trecho escrito por ela:
Nas camadas mais desassistidas, o fim do casamento indissolúvel produziu milhares de lares sem pai, onde a avó e a mãe servem de esteio para a estrutura familiar. Na falta de creches, de escolas, do estado para ampará-las, a tarefa de criar rapazes que não repitam a violência e o abandono dos pais e meninas que deem um basta na escravidão das mães, é uma missão que beira o inatingível.
Ela não consegue ver as mulheres ricas e brancas com uma estrutura familiar desequilibrada como esta. Ela também não acredita que os homens das classes mais abastadas reproduzam o machismo, talvez daí venha sua aversão ao feminismo e àquilo que ela chama de “vitimização do discurso feminista”, pois ela não tem esta estrutura familiar e não teria um homem que a violentaria e abandonaria seus filhos (como aparece nos noticiários).

O que Fernanda não percebe é que ela foi tão ou mais vítima do que as mulheres pobres e negras são. Ela teve um livro rechaçado sob a acusação de ser machista. No entanto, mesmo que ele não fosse, ele poderia ter sido rechaçado só por ela ser mulher e latina, ou seja, ela é tão vítima do machismo como Irene e a morena. O que diferencia Fernanda das outras mulheres é a cor da sua pele e o valor da sua conta bancária, que dão a ela o poder de ter coisas que Irene nunca teria, dentre elas, o espaço no jornal. Irene só ocuparia este espaço se fosse estuprada e morta por um dos seus assediadores. Fernanda, podendo ocupar este espaço, faz mau uso dele, justificando a violência que ela, Irene e a morena sofreram. A atriz não percebe que o machismo a viola todos os dias, que o racismo acaba com Irene todos os dias, que a pobreza acaba com mulheres todos os dias, pois no mundo dela basta ser branca e rica.  Fernanda nunca chegou a experimentar o poder de Irene, assim como não experimentou e nunca experimentará a subalternidade dela, a qual é expressa até no imaginário de um poeta que a vê pedindo licença para entrar no céu. 

Fernanda precisa experimentar ou imaginar outras coisas da vida de Irene e da morena, talvez assim sinta mais empatia e consiga sentir não o companheirismo que ela tanto inveja nos homens, mas a sororidade das mulheres, que a fará se incomodar com o machismo, rever sua admiração pelo machões e se desculpar por ter falado mal de Irene que a criou, pois apenas se desculpar com as mulheres que a criticam não é suficiente.



[1] Feminino de mulato, termo de origem espanhola derivado de "mulo" (animal híbrido, resultado do cruzamento de cavalo com jumenta ou jumento com égua). As palavras "mulato" e "mulata" foram usadas de forma pejorativa para designar os filhos mestiços de mulheres negras escravizadas que coabitavam com os escravizadores brancos.


sábado, 20 de fevereiro de 2016

Professores Abusadores

Foto da Comunidade Meu Professor Abusador

Há dias  em que as pancadas da vida são terríveis. Hoje foi um deles. Iniciei meu dia com uma amiga me chamando a atenção para um vídeo em que uma doutora formada por uma renomada universidade pública brasileira retoma um triste episódio de assédio sexual,  o qual foi seguido de assédio moral, ambos ocorridos com ela na mesma instituição. Há algum tempo acompanho o caso desta pesquisadora e muito me entristeço com a forma como isso é tratado no meio acadêmico: ou se omitem ou escondem estas situações. Devido ao compartilhamento do vídeo, acabei conversando com um amigo, também acadêmico de uma renomada instituição, e ele não sabia do ocorrido com a pesquisadora de São Paulo. Este amigo é uma pessoa com militância política, logo deveria saber do episódio, mas ele desconhecia – comprovando assim o silêncio da academia quando o assédio é com mulheres.

E minha manhã não poderia acabar pior, pois passeando nas páginas do Facebook, encontrei uma comunidade chamada Meu Professor Abusador. Esta página tem pouco tempo, parece que menos de um mês. Ela foi criada por meninas de Porto Alegre (minha cidade natal) e talvez por isso o maior número de relatos seja do Rio Grande do Sul. O objetivo da página é denunciar, anonimamente, casos de assédio sofridos por mulheres. Creio que li mais de 50 pequenos relatos e me entristeci a ponto de chorar. Identifiquei escolas por onde já passei ou onde lecionam amigos, ou pior ainda, locais em que estudam filhas de pessoas que me são queridas. O mais triste de tudo foi identificar professores, colegas de profissão, que são os assediadores. Alguns dos identificados já carregam esta fama e não se faz nada, porque não tem como se fazer qualquer coisa; no entanto, outros carregam a fama de bons moços ou de homens de respeito, advindo daí o espanto, nojo, medo e vergonha de compartilhar a profissão com eles.

Na referida página há denúncias de meninas que adentram a puberdade, aquelas que temos vontade de abraçar e dizer que o mundo não é assim. Há histórias de meninas mais velhas, beirando os 18 anos, e para estas a gente sente vontade de dizer para entrar na luta, pois logo tudo irá acabar. Só que percebemos que isso seria mentira, porque há relatos de mulheres com mais de 20, 30, 40 anos que sofreram as mesmas coisas na adolescência, enquanto estavam na escola; na juventude, enquanto estavam na graduação; na vida adulta, quando estavam na pós-graduação ou em cursos de formação para adultos – o que demonstra que a luta vem de tempos e que talvez ainda se estenda por mais tempo ainda.

Dizer que o mundo é cor de rosa seria mentira, dizer que já vai passar também é, contudo, dizer que não podemos nos calar é a única solução. Hoje é preciso dizer que não podemos aceitar o assédio porque somos mulheres. Não podemos aceitar o assédio porque somos mulheres negras. Não podemos aceitar o assédio porque somos mulheres trans. Enfim, não podemos aceitar o assédio porque somos nós, seja esse nós quem ou como for. Os homens não podem continuar assediando e achando que isto está certo, pois a falta de punição passa essa ideia. As escolas, as universidades, os espaços de ensino não podem continuar permitindo e perpetuando uma cultura que subalterniza o sujeito feminino. A voz das mulheres precisa ser ouvida e aquilo que ocorre conosco não pode ser tratado como algo sem importância ou como má interpretação da situação.

É chegado o momento de agir no âmbito legal e de agir nos domínios do discurso. Não temos muitas armas, pois é nossa palavra contra a deles, em qualquer lugar. No entanto, precisamos fazer alguma coisa: conseguir testemunhas, guardar provas (conversas, mensagens, enfim), denunciar (mesmo sabendo que podem não nos ouvir), modificar a forma de educar/tratar os homens (seja o filho, o irmão, o amigo – não é bonito assediar ninguém, tampouco é demonstração de virilidade). Mas, principalmente, não devemos nos sentir culpadas e guardar isso conosco, pois a culpa e o medo nos imobilizam e permitem que esses absurdos se perpetuem nos locais que deveriam nos proteger e libertar.

sábado, 13 de fevereiro de 2016

Nossos cabelos, nossa ancestralidade e nossa resistência cotidiana

Imagem de https://ofpagesandstages.wordpress.com/

Em meio ao debate acalorado sobre relações raciais, recomendo e reflito sobre dois textos espetaculares:  Alisando nosso cabelo, da Bell Hooks (em inglês, aqui ou na tradução do Crioula que está perfeita), e sobre a série estadunidense que está dando o que falar: How to get away with murder, estrelada pela Viola Davis.

O episódio 13 – Mama’s here now ou Mamãe está aqui agora – é uma pancada! Nele finalmente vemos a fragilidade da aguerrida professora e advogada Annalise Keating (Viola Davis), a interação conflituosa de gerações, questões sobre o estupro de mulheres, nesse caso especificamente negras, feridas ainda não cicatrizadas entre mãe e filha, a polêmica sobre receber um nome e se autonomear, o problema de a população afrodescendente viver com doações/sobras alheias. Todos os temas interseccionados sem linearidade, tal qual trabalho nas questões de gênero e raça. A coisa toda acontece simultaneamente e uma temática influencia a outra para que o caso seja único entre Annalise e sua mãe Ophelia (Cicely Tyson).

Realmente me senti representada, não porque eu tenha uma relação conflituosa com minha mãe ou porque tenha passado pelos mesmos problemas das personagens, mas, porque, além da raça e do gênero, vi um mix de temas importantes sendo evidenciados: mães superprotetoras que parecem não proteger suas filhas; a firmeza de Ophelia nos cuidados da filha para que não desanimasse diante de um momento depressivo (a morte do marido); defeitos e qualidades de mulheres negras expostos ali, de maneira complexa; o fim de personagens mulheres negras circunscritos a alegorias, exclusivamente; o retrato de mulheres negras como seres humanos em estas contradições e acertos.

Na infância, Annalise foi estuprada pelo tio e sempre achou que sua mãe, além de saber de tudo, preferiu ignorar o acontecido, motivo pelo qual carregava consigo extrema mágoa da mãe. Por sua vez, Ophelia acreditava que a filha poderia ser a assassina do próprio marido.

E o que essa história toda tem a ver com o texto de bell hooks? Então pessoas, esse nó principal, e outros menores, se desfazem em uma cena sobre ancestralidade. A fim de descobrir a versão de sua filha sobre o assassinato do marido, Ophelia chama Annalise para: PENTEAR-LHE OS CABELOS! É isso mesmo minha gente, algo tão simples, mas que eu mulher negra que já fui criança, e tantas outras mulheres negras espalhadas por essa diáspora (como a própria bell hooks e talvez você leitora) sabemos que é um dos maiores atos de afeto entre mãe e filha negras. Bell hooks diz que neste cuidado “tínhamos um mundo no qual as imagens construídas como barreiras entre a nossa identidade e o mundo eram abandonadas momentaneamente, antes de serem reestabelecidas. Vivíamos um instante de criatividade, de mudança”.

O ato de pentear os cabelos exige todo um ritual e Ophelia, pobre e idosa, mostra parte deste rito quando faz a imponente profissional Annalise, que ali na intimidade é apenas mais uma filha, respeitar toda a sua história como mãe e mulher negra e sentar-se no chão para ser penteada. É também nesse momento de intimidade e carinho que essas mulheres compartilham as verdades mais escondidas de suas trajetórias. Ophelia fala que homens sempre pegam o que querem das mulheres e diz que viu o dia em que o tio de Annalise saiu do quarto da garota durante a madrugada, soube o que ele tinha feito com ela e que pouco tempo depois, tirou as crianças de casa e com um simples fósforo e o álcool da garrafa de bebida do tio, se livrou do homem que estuprara sua filha. Menciona, igualmente, o preço que pagou pelo ato, pois perdeu o único lugar que tinha para abrigar sua família e viveu durante muito tempo de doações da igreja, coisa que “Anna Mae” sempre detestou. Após essa declaração a personagem forte de Cicely Tyson, diz que às vezes as pessoas só fazem o que têm que fazer e termina dizendo que não julgará a filha, caso ela tenha matado Sam.

O cuidado da produção com esse momento tão caro às mulheres negras faz com que uma cena extremamente densa se torne algo de uma beleza singular. Nenhuma descrição que eu fizesse faria jus ao que se passa na tela, e o modo como a cena me tocou provavelmente será diferente do como tocará outras mulheres, o que atribuo às experiências que cada uma de nós viveu.

O processo de tornar-se mulher negra sobre o qual bell hooks discorre em seu texto, inevitavelmente se faz presente na cena; a intimidade e o afeto entre mulheres negras mostra uma prática ancestral, que resiste: resiste aos séculos, resiste ao racismo, ao capitalismo e suas práticas de embranquecimento das mulheres negras, e me parece resistir porque representa a práxis máxima do afeto entre duas mulheres negras.

Em tempos, de uma internet quase sem tolerância, nos quais xingar/falar mal de mulheres negras pelas características de seus cabelos é algo comum e naturalizado, faz-se necessário lembrar que tal atitude não ofende apenas a mulher e a sua autoestima - não é tão simples de ignorar porque não diz respeito apenas ao sujeito que nós somos; o que dói em muitas de nós é a ofensa a toda uma tradição e às memórias afetivas positivas que temos de nossas mães, nossas, avós, tias, primas, bisas, irmãs e até mesmo amigas. Ofender nossos cabelos ofende a uma história compartilhada somente entre mulheres negras, mas independente de tudo isso, e talvez até contrariando um pouco o desenvolvimento da argumentação de bell hooks (que escreveu seu texto em 1989), esses momentos de doação, de amor, de companheirismo, de criatividade e de intimidade resistem quase que silenciosamente. Eles não se renderam e nem se rendem ao mercado; e, acredito, não se rendem porque manter nossas tradições nos pequenos atos diários significa mostrar para as mulheres que amamos o quanto somos poderosas juntas.


Esse pequeno ato de resistência cotidiana entre mulheres negras vale muito mais do que enormes textos sobre sororidade, porque ele diz, para nós mesmas, que não estamos sós nesse mundo cheio de racismo, de machismo e de violência.





A autora deste texto é Adélia Mathias. Jovem mulher negra formada em Letras, doutoranda em Literatura na Universidade de Brasília e uma militante feminista e anti-racista que coloca paixão e emoção no que faz e no que escreve. 

terça-feira, 9 de fevereiro de 2016

Descolonizando nossas mentes


“A maneira como formulamos ou representamos o passado molda nossa compreensão e nossas concepções do presente” (Edward Said, 2011, p. 36). Esta é a frase que me veio à mente quando vi a  foto de uma família formada por pais brancos e filho negro que tem causado polêmica neste carnaval. O motivo de tal polêmica foi o fato dos pais se fantasiarem de Aladdin e Jasmine e o menino ser fantasiado de Abu, o macaco de Aladdin. A imagem que tem circulado nas redes sociais e manchetes de jornais é marcada por uma série de comentários de negros e brancos. Alguns defendem  os pais argumentando que eles estavam apenas brincando e o preconceito está nos olhos de quem vê – argumento de brancos que nunca sentiram o preconceito ou de negros que precisam se desalienar a partir de uma “tomada de consciência das realidades econômicas e sociais” (Fanon, 2008, p. 28). Outros apontam que foi racismo e que os pais devem ser punidos por terem feito uma exposição racista da criança, novamente há brancos e negros: os primeiros são os partidários das ações de resistência ao racismo e que reconhecem os privilégios que sempre tiveram por sua cor de pele; os segundos reconhecem-se como vitimas históricas deste sistema racista e exigem reparações. 

Entretanto, tanto o grupo de defesa dos pais, quanto o grupo de acusação não percebe que problema não é um caso isolado. A fantasia da família apenas foi chocante porque o menininho é o macaco e temos presenciado muitos negros sendo chamados de macacos nos últimos tempos: Tinga, Neymar, Aranha, Arouca, Maju, Thais Araújo, etc. O grande problema é, na verdade, a colonização das mentes, que faz com que muitos negros e brancos naturalizem o racismo de tal forma que ele passa despercebido. Se fizermos uma busca rápida na página pessoal do pai do menino que foi fantasiado de macaco, perceberemos que ele é um fã da Disney, assim como é um apaixonado pelo filho. As fotos revelam uma família em que a mãe é comparada a uma princesa da Disney e o olhar do filho é capaz de mudar a vida do pai. O problema desta família, como de boa parte das pessoas que não percebem o racismo em uma situação como esta, é a colonização das mentes, ou seja, essas pessoas estão tão tomadas pela globalização, capitalismo, e pelos ismos alienadores que não conseguem perceber o peso dos seus atos.

A gravidade da foto é a mesma que acomete crianças negras que não se vem representadas em brinquedos, programas de televisão e espaços de diversão. É a mesma que ataca o jovem negro que é assediado pela polícia, pois faz parte do grupo em atitude suspeita. É a mesma que agride a mulher negra que é vista como boa para a cama e para a cozinha, mas não para casar. Estes três exemplos mostram  situações tão naturalizadas que fazem com as bonecas negras, de mesma marca e material das bonecas brancas, custem mais barato nas lojas. Muitos ainda atravessam a rua quando avistam um grupo de meninos negros da periferia ou acham natural colocar estes meninos amarrados em postes se cometerem alguma infração. Outros fantasiam sexo com mulheres negras, mas nunca assumiriam um relacionamento com uma – basta ver os índices de mulheres negras solteiras e sozinhas. E há ainda aqueles que, de forma natural, perguntam se a negra em determinado lugar ocupa a posição serviçal: empregada doméstica em ambientes familiares, recepcionista ou copeira em outros locais de trabalho.

Enfim, a foto mostra a necessidade de mudança nos discursos e nos espaços de poder e de representação. A mudança nos discursos passa por tornar perceptível a existência do racismo, seja agindo como o goleiro Aranha, seja chamando a atenção para o absurdo da fantasia da família. A mudança nos espaços de poder se dará oportunizando a negros e a negras a ocupação de espaços historicamente destinados aos brancos: nas universidades, no serviço público ou em posições de chefia nas empresas privadas. A mudança nos parâmetros de representatividade passa por modificarmos os currículos das escolas, por exigirmos brinquedos que representem todas as crianças, por não aceitarmos negros apenas em papéis subalternos nas televisões. Enfim, brancos e negros precisam reconhecer que o racismo é mais do que uma atitude, é uma estratégia para colocar um grupo em posição subalterna a outro. Além disso, não se pode ignorar que esta estratégia tem sido bem sucedida, pois não percebemos a existência de um passado escravagista que animalizou homens e mulheres negras, de forma que ainda reproduzimos, na atualidade, práticas racistas e discriminatórias como a da foto ou de tantas outras que vemos diariamente.

Referências
FRANTZ, F. Pele Negra Mascaras Brancas. Salvador: EDUFBA, 2008.

SAID, E. W. Cultura e Imperialismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2011